Uma história de Ciclídeos Africanos nem tão bela assim...
Quando mantemos em nossa casa peixes que não existem em nosso país temos uma responsabilidade a mais que vai muito além de controlar a temperatura, o pH e alimentar comedidamente, nós todos temos uma responsabilidade ambiental. Sabia? Pois é, temos sim...
Toda e qualquer espécie que não existe naturalmente num ambiente é chamada “espécie exótica”, seja ela planta, animal ou fungo...mas aqui vou dar preferência ao assunto: ciclídeos. Tal espécie pode provir de uma região diferente ou até de um outro país, como nossos CAs ou mesmo quando um Tucunaré amazônico que é introduzido no Pantanal.
Quando remontamos a nossa realidade mais próxima, um apartamento ou uma casa, podemos nos inserir nesse contexto de responsabilidade ambiental. Em muitos casos, quando a pessoa que tem que desmontar seu aquário e não vê a curto prazo uma possibilidade de se desfazer de seus peixes, ou mesmo fica com preguiça de encontrar um bom destino para eles, resolve liberá-los num corpo d’água mais próximo, o qual pode ser um córrego, um rio ou um lago. A princípio ela acha que está fazendo o melhor pelo seu peixinho e sequer mede as conseqüências. Para o peixinho pode até ser uma boa, mas para o resto do ambiente talvez isso possa vir a refletir numa catástrofe. É claro que muitos fatores estão inclusos nisso que estou falando e isso considera a escala (soltar um guppy é diferente de se soltar 10 mil), as características da própria espécie etc.
Mas a educação é uma coisa que se começa pela unidade, logo, não vá sair por aí dizendo para todos os teus vizinhos que eles podem soltar UM guppy aí no córrego do lado porque o Johnny disse que não tem problema. Acho que já deu pra entender, não é mesmo? Vamos ao ponto...
Uma espécie exótica quando é introduzida não carrega consigo todo o ecossistema no qual vivia, ela chega num ambiente novo, sem predadores naturais, sem a sazonalidade do sistema, sem as condições que a controlavam e impediam com que crescesse absurdamente em número a ponto de causar problemas. Assim, se ela for “competente” pode vir até mesmo dominar um ambiente.
Já ouviram falar da tilápia? Estou certo que sim. Pois então vou contar uma história que pude ter contato quando realizei minha dissertação de mestrado com a pesca artesanal no lago Paranoá em Brasília-DF. Os dados da ictiofauna (peixes) não são meus, mas todas as referências podem ser encontradas na minha dissertação.
O lago Paranoá é um exemplo de um grande aquário que não foi bem cuidado. Tudo começa na década de 60, quando os aportes de efluentes domésticos (esgotos) começaram a entrar no lago recém-formado, sem tratamento adequado e em ritmo cada vez mais acelerado – isso até a década de 90. Esgotos = nutrientes. Muito nutriente = eutrofização. Eutrofização elevada = colapso de todos os antigos habitats e seus sistemas. Os efeitos de eutrofização são idênticos aos de um aqua na sua casa, todavia, com proporções diferentes e natureza de nutrientes também diferentes (no lago Panaroná temos os efluentes domésticos, as enxurradas da chuva que carreiam tudo, na sua casa ração, substrato orgânico etc.). Os produtos são fosfatos, nitratos, amônia...tudo aquilo que você já conhece. Nada demais até aqui.
Obs: a eutrofização age a princípio como um incentivador na produção primária (nutrientes Þ algas Þ zooplâncton Þ peixinhos Þ peixões), mas veremos mais a frente o que quis dizer com “excesso” que induz ao colapso.
Não contente com esse quadro o governo decidiu na mesma época incentivar o lazer e a pesca esportiva e iniciou um “povoamento” (= peixamento) do lago com espécies pescáveis, como a região não as possuía em “qualidade”...por aqui não temos aqueles peixes que brigam com o anzol como o tucunaré.
Bem, quando recorremos aos dados existentes vemos que eles indicam que foram lançados no reservatório um total de 7.000 “bluegill” (Lepomis macrochira), 145.000 tilápias do Congo (Tilapia rendalli), 6.500 “black-bass” (Micropterus salmoides) e 5.000 mandi amarelo (bagre não identificado). Outras possíveis introduções, embora sem registros, teriam ocorrido durantes as décadas de 60 e 70. A bibliografia remete a esse período a introdução da carpa comum (Cyprinus carpio), o tucunaré (Cichla ocellaris) e a tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus). O início da década de 80 foi ainda marcado por peixamentos no lago com duas espécies amazônicas, o tamoatá (Callychthys callychthys) e o tambaqui (Colossoma macropomum), além de uma espécie de camarão de água doce do gênero Macrobrachium. Nesta última década, apenas dois outros registros vieram participar da lista de espécies exóticas introduzidas no lago Paranoá: uma delas é o bagre africano (Clarias sp.), introduzido clandestinamente, enquanto que a outra é a carpa chinesa prateada (Hyphophthalmichthys molitrix), na oportunidade em que alguns exemplares provenientes dos experimentos do Programa de Biomanipulação da Companhia de Saneamento de Brasília-CAESB escaparam de tanques experimentais.
Mas não pára por aí não. Nós hobbystas também colaboramos. Em análises sobre as comunidades de peixes ainda foram encontrados: poecilídeos como o espada (Xiphophorus hellerii), o plati (X. maculatus) e o guppy (Poecilia reticulata) e ciprinídeos, tal como o japonês ou kinguio (Carassius auratus)...todos remetidos a aquaristas amadores.
Hoje, as espécies exóticas no lago Paranoá representam quase 23% da diversidade de peixes, sabe-se que a comunidade de peixes é formada por 67 espécies, das quais 52 (77,6%) são nativas e 15 (22,4%) exóticas.
Sobre nossos ciclídeos africanos, foram citadas as duas tilápias: a tilápia do Congo (Tilapia rendalli) e a tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus).
Curiosidade: Tilápias são os peixes mais cultivados do mundo e se distribuem por cerca de 70 espécies, em quatro gêneros: Oreochromis, Sarotherodon, Tilapia e Danakilia.
Tá, o Johnny falou de um monte de peixes num lago lá de Brasília, mas e aí? Qual o problema? Peixes vivem na água, o lago é cheio d’água, o que há de errado?
Vamos ver agora...
O que podemos perceber sobre o problema até aqui não teve nada a ver com as tilápias. Pensemos juntos:
1) Regime hidrológico alterado pelo represamento (formação do lago Paranoá), onde o ciclo natural das chuvas e secas da região ficou diferente – controlado pela barragem (isso é que acontece quando represamos rios);
2) Alteração da taxa de nutrientes na água: águas originalmente com baixos teores de fósforo e nitrogênio, tornaram-se eutrofizadas em pouco tempo;
3) Curto período de adaptação para as espécies nativas (1959 – 2004 = 45 anos): peixes (e outros organismos) de águas correntes forçados a se adaptar ao ambiente lacustre com pressão antrópica ininterrupta (esgotos, pesca, esportes, etc.) – se contarmos que a evolução demora alguns milhares de anos para criar algo...;
4) Introdução de espécies exóticas: concorrência das espécies nativas com as exóticas e perda de diversidade biológica...huummm, aqui já começa a influência direta das espécies exóticas.
Existem duas maneiras das tilápias influírem sobre o lago Paranoá: direta e indiretamente. Diretamente é fácil pensar, pois elas comem a comida dos outros, batem nos outros, como um bom ciclídeo, requisitam espaço/tocas etc. E indiretamente, como seria?
Com base em uma década de estudos experimentais de manejo dos peixes para melhoria da qualidade da água (Programa de Biomanipulação da CAESB), foi definitivamente comprovado o efeito negativo da superpopulação de tilápias acelerando a reciclagem de nutrientes e favorecendo o crescimento das algas indesejáveis através da excreção do fósforo e também na ressuspensão de fósforo depositado no fundo do lago. Esta última referência significa que, por a tilápia ter o hábito de se alimentar rente ao fundo, onde se alimenta, entre outros, de algas bentônicas (especialmente as verdes-filamentosas e as diatomáceas), ingerindo assim, sedimento riquíssimo em fosfato outrora depositado durante o acelerado processo de eutrofização do lago Paranoá, ela acaba por aumentar o teor de nutrientes na água.
Mas por que o Johnny fala tanto em problemas ambientais causados pelas tilápias?
O organismo desses peixes excreta o fósforo diretamente na coluna d’água, na forma de ortofostato, cuja forma é a adequada para uma absorção direta feita por um organismo autotrófico fotossintetizante, a cianobactéria Microcystis aeruginosa, o qual por sua vez atrai o foco do problema, quando falamos em termos de qualidade de água e saúde humana.
Será que tem tanta tilápia assim, a ponto de causar danos ecológicos?
Um levantamento hidroacústico do estoque de pesqueiro no lago (peixes passíveis de cair na rede de um pescador – tarrafas geralmente), indicou um estoque de cerca de 1.400 toneladas de peixe. Vale ressaltar que essa técnica agrega algumas limitações que resultam em subestimativa do estoque pesqueiro total, uma vez que peixes em águas muito rasas e peixes de hábitos bentônicos (“colados” no fundo), não são captados devido à confusão que se faz na recepção do eco. Em complemento, existem variações entre os períodos diurno e noturno. Cabe ainda ressaltar que 50% da biomassa (“peso”) total de peixes é composta por larvas, alevinos e peixes jovens não vulneráveis à pesca comercial com tarrafa, o limite máximo alcançável de redução das tilápias com este aparelho de captura estará limitado a 50% desta biomassa total existente.
Mas eliminar a tilápia não é algo simples de se pensar. Quando falamos em pesca no lago Paranoá, as espécies dominantes são: tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus) com 80%, tilápia do Congo (Tilapia rendalli) com 8% e carpa comum (Cyprinus carpio) com 11%; as demais representam apenas 1%...note que 88% é só de tilápia...
As estimativas do estudo foram, em média, superiores a 300 Kg/ha, o que situa o Lago Paranoá dentre os ecossistemas de maior produtividade pesqueira, quando comparado tanto a lagos tróficos temperados quanto a lagos e reservatórios subtropicais.
Só a título de curiosidade e alarme, mesmo na pesca com malha determinada para retirar possíveis reprodutores e comprometer o recrutamento dos estoques de tilápia, já é sabido que os peixes possuem mecanismos para burlar a pressão da pesca e sobreviver. Como? Elas reduzem o tamanho de maturação e passam a reproduzir mais cedo e menores.
Qual a relação entre a tilápia e a cianobactéria?
Este microorganismo (a cianobactéria), quando estimulado pela presença de nutrientes em grande quantidade, acaba por gerar um florescimento explosivo (bloom), numa atitude oportunista. A espessa camada superficial formada por estes organismos (nata ou escuma), quando em explosão demográfica, impede a penetração de luz, trazendo limitações à fotossíntese e sobrevivência dos demais organismos autotróficos. Esse fator causa um empobrecimento no teor de oxigênio existente na água, conseqüente da retirada do gás pela respiração da cianobactéria e da decomposição dos outros organismos. Na época de inverno, a situação se agrava, pois a grande amplitude térmica do ar, entre dia e noite, causa resfriamento brusco das camadas superiores do Paranoá. Como a água fria apresenta-se mais densa, sua tendência é dirigir-se ao fundo, ao contrário da água de fundo que, mais quente, tende a ascender. Isso acontece porque o resfriamento não se dá gradualmente. Tal movimento acaba por gerar células de circulação na coluna d’água e proporciona a ressuspensão do sedimento depositado, significando um enriquecimento ainda maior de nutrientes nas camadas superficiais e mais produtivas da água. Na presença de luz e nutrientes, a alga apresenta uma explosão populacional produzindo muito oxigênio de dia, mas retirando, pela respiração, este gás em demasia durante a noite.
Além disso, as tilápias agem sobre as populações de plâncton, filtrando com maior eficácia sobre os espécimes menores e menos evasivos (principalmente os rotíferos) e predando de forma seletiva sobre as espécies de maior porte, tais como grandes cladóceros e copépodos; convém ainda ressaltar sua ação sobre o sedimento, e sobre as macrófitas. Esse tipo de comportamento culmina numa promoção de sintomas de eutrofização do corpo d’água, visto que os peixes planctófagos podem predar seletivamente o zooplâncton herbívoro, o qual pastaria sobre o fitoplâncton, onde por sua vez se encontra a Microcystis aeruginosa.
O estopim desse tão mencionado estado eutrofizado foi notado a partir de maciças mortandades de peixes ocorridas nas décadas de 70 e 80 e mais recentemente nos anos de 1997 e 1998, onde aproximadamente 150 toneladas de peixes morreram de repente em cada um desses últimos eventos, sendo que destes 90% eram tilápias.
Reunindo esses diversos fatores físicos, químicos e biológicos, nota-se a excessiva retirada de oxigênio acaba afetando diretamente as comunidades de seres vivos do lago. Todavia, é notoriamente observado sobre o contingente de peixes, quando causa elevada taxa de mortalidade sobre suas populações, uma vez que estão entre os mais perceptíveis habitantes desse corpo d’água.
Dessa forma, o desequilíbrio ecológico, afeta a qualidade da água do lago Paranoá (classificada como Classe 2[1]), e por fim, todo o meio ambiente adjacente, ou em conexão. Mediante os estudos, ficou provado o motivo para se reduzir o excedente populacional dessas espécies exóticas, as quais colaboram com a proliferação das cianobactérias, como uma das etapas do Programa de Biomanipulação. Pois se o peixe pudesse ser removido da cadeia trófica, haveria conseqüente aumento de densidade de zooplâncton, que reduziria a biomassa de fitoplâncton e culminaria na melhoria da qualidade da água.
A forma que melhor se enquadrou num contexto “ambientalmente sustentável” foi a pesca (embarcada) com tarrafa. Sua atuação se dá basicamente sobre estoques de espécies exóticas, destacando-se as tilápias (do Congo Tilapia rendalli e a do Nilo Oreochromis niloticus) e a carpa-comum (Cyprinus carpio). Sabe-se que a porcentagem dos lagos que sofreram peixamentos com espécies piscívoras – com o objetivo de atingir as espécies-problema por meio da predação direta das mesmas – possuem resultados inferiores, quando se analisa a redução de algas, se comparados aos que sofreram a retirada parcial dos estoques de “espécies-problema”.
Com vistas a afetar ainda mais o adensamento de cianobactérias será introduzida uma outra espécie exótica filtradora de algas: a carpa-prateada chinesa (Hyphophthalmichthys molitrix). Calma! Já vimos que a alta biomassa de peixes aumenta a densidade de fitoplâncton devido ao efeito de enriquecimento nutricional por intermédio de sua excreção, certo? Logo, os estudos de biomanipulação estão calculando a densidade de carpas que poderá ser introduzida para fazer a filtração (que inclui as cianobactérias).
E se ela começar a reproduzir e vier a ser a nova praga do lago Paranoá?
Aí é que está...décadas de dados e estudos sobre essa espécie de carpa revelam que ela é incapaz de se reproduzir em lagos. No ambiente natural seus ovos precisam de quilômetros de águas correntes para serem capazes de eclodir e vingar os filhotes. Não há registros de reprodução em lagos. Isso é 100% seguro? Só o tempo dirá...Mas pelo menos se pesquisou bem antes de introduzir um novo peixe num ambiente.
Está vendo quanto trabalho dá? E olha que esse foi só um exemplo de um estudo de caso. Sabemos, porém, que existem outros desastres causados ao ambientes pela introdução de espécies exóticas, como tucunarés amazônicos no Pantanal que fugiram de pisciculturas, gatos domésticos que viraram selvagens na Austrália, mexilhões dourados asiáticos na bacia do Prata que vieram nos lastros dos navios, etc.
Agora, que tal pensar duas vezes antes de soltar seus CAs no lago aí perto da tua casa? O dano ambiental poderá vir a ser irreparável...
Inté
By Johnny Bravo
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Quando mantemos em nossa casa peixes que não existem em nosso país temos uma responsabilidade a mais que vai muito além de controlar a temperatura, o pH e alimentar comedidamente, nós todos temos uma responsabilidade ambiental. Sabia? Pois é, temos sim...
Toda e qualquer espécie que não existe naturalmente num ambiente é chamada “espécie exótica”, seja ela planta, animal ou fungo...mas aqui vou dar preferência ao assunto: ciclídeos. Tal espécie pode provir de uma região diferente ou até de um outro país, como nossos CAs ou mesmo quando um Tucunaré amazônico que é introduzido no Pantanal.
Quando remontamos a nossa realidade mais próxima, um apartamento ou uma casa, podemos nos inserir nesse contexto de responsabilidade ambiental. Em muitos casos, quando a pessoa que tem que desmontar seu aquário e não vê a curto prazo uma possibilidade de se desfazer de seus peixes, ou mesmo fica com preguiça de encontrar um bom destino para eles, resolve liberá-los num corpo d’água mais próximo, o qual pode ser um córrego, um rio ou um lago. A princípio ela acha que está fazendo o melhor pelo seu peixinho e sequer mede as conseqüências. Para o peixinho pode até ser uma boa, mas para o resto do ambiente talvez isso possa vir a refletir numa catástrofe. É claro que muitos fatores estão inclusos nisso que estou falando e isso considera a escala (soltar um guppy é diferente de se soltar 10 mil), as características da própria espécie etc.
Mas a educação é uma coisa que se começa pela unidade, logo, não vá sair por aí dizendo para todos os teus vizinhos que eles podem soltar UM guppy aí no córrego do lado porque o Johnny disse que não tem problema. Acho que já deu pra entender, não é mesmo? Vamos ao ponto...
Uma espécie exótica quando é introduzida não carrega consigo todo o ecossistema no qual vivia, ela chega num ambiente novo, sem predadores naturais, sem a sazonalidade do sistema, sem as condições que a controlavam e impediam com que crescesse absurdamente em número a ponto de causar problemas. Assim, se ela for “competente” pode vir até mesmo dominar um ambiente.
Já ouviram falar da tilápia? Estou certo que sim. Pois então vou contar uma história que pude ter contato quando realizei minha dissertação de mestrado com a pesca artesanal no lago Paranoá em Brasília-DF. Os dados da ictiofauna (peixes) não são meus, mas todas as referências podem ser encontradas na minha dissertação.
O lago Paranoá é um exemplo de um grande aquário que não foi bem cuidado. Tudo começa na década de 60, quando os aportes de efluentes domésticos (esgotos) começaram a entrar no lago recém-formado, sem tratamento adequado e em ritmo cada vez mais acelerado – isso até a década de 90. Esgotos = nutrientes. Muito nutriente = eutrofização. Eutrofização elevada = colapso de todos os antigos habitats e seus sistemas. Os efeitos de eutrofização são idênticos aos de um aqua na sua casa, todavia, com proporções diferentes e natureza de nutrientes também diferentes (no lago Panaroná temos os efluentes domésticos, as enxurradas da chuva que carreiam tudo, na sua casa ração, substrato orgânico etc.). Os produtos são fosfatos, nitratos, amônia...tudo aquilo que você já conhece. Nada demais até aqui.
Obs: a eutrofização age a princípio como um incentivador na produção primária (nutrientes Þ algas Þ zooplâncton Þ peixinhos Þ peixões), mas veremos mais a frente o que quis dizer com “excesso” que induz ao colapso.
Não contente com esse quadro o governo decidiu na mesma época incentivar o lazer e a pesca esportiva e iniciou um “povoamento” (= peixamento) do lago com espécies pescáveis, como a região não as possuía em “qualidade”...por aqui não temos aqueles peixes que brigam com o anzol como o tucunaré.
Bem, quando recorremos aos dados existentes vemos que eles indicam que foram lançados no reservatório um total de 7.000 “bluegill” (Lepomis macrochira), 145.000 tilápias do Congo (Tilapia rendalli), 6.500 “black-bass” (Micropterus salmoides) e 5.000 mandi amarelo (bagre não identificado). Outras possíveis introduções, embora sem registros, teriam ocorrido durantes as décadas de 60 e 70. A bibliografia remete a esse período a introdução da carpa comum (Cyprinus carpio), o tucunaré (Cichla ocellaris) e a tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus). O início da década de 80 foi ainda marcado por peixamentos no lago com duas espécies amazônicas, o tamoatá (Callychthys callychthys) e o tambaqui (Colossoma macropomum), além de uma espécie de camarão de água doce do gênero Macrobrachium. Nesta última década, apenas dois outros registros vieram participar da lista de espécies exóticas introduzidas no lago Paranoá: uma delas é o bagre africano (Clarias sp.), introduzido clandestinamente, enquanto que a outra é a carpa chinesa prateada (Hyphophthalmichthys molitrix), na oportunidade em que alguns exemplares provenientes dos experimentos do Programa de Biomanipulação da Companhia de Saneamento de Brasília-CAESB escaparam de tanques experimentais.
Mas não pára por aí não. Nós hobbystas também colaboramos. Em análises sobre as comunidades de peixes ainda foram encontrados: poecilídeos como o espada (Xiphophorus hellerii), o plati (X. maculatus) e o guppy (Poecilia reticulata) e ciprinídeos, tal como o japonês ou kinguio (Carassius auratus)...todos remetidos a aquaristas amadores.
Hoje, as espécies exóticas no lago Paranoá representam quase 23% da diversidade de peixes, sabe-se que a comunidade de peixes é formada por 67 espécies, das quais 52 (77,6%) são nativas e 15 (22,4%) exóticas.
Sobre nossos ciclídeos africanos, foram citadas as duas tilápias: a tilápia do Congo (Tilapia rendalli) e a tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus).
Curiosidade: Tilápias são os peixes mais cultivados do mundo e se distribuem por cerca de 70 espécies, em quatro gêneros: Oreochromis, Sarotherodon, Tilapia e Danakilia.
Tá, o Johnny falou de um monte de peixes num lago lá de Brasília, mas e aí? Qual o problema? Peixes vivem na água, o lago é cheio d’água, o que há de errado?
Vamos ver agora...
O que podemos perceber sobre o problema até aqui não teve nada a ver com as tilápias. Pensemos juntos:
1) Regime hidrológico alterado pelo represamento (formação do lago Paranoá), onde o ciclo natural das chuvas e secas da região ficou diferente – controlado pela barragem (isso é que acontece quando represamos rios);
2) Alteração da taxa de nutrientes na água: águas originalmente com baixos teores de fósforo e nitrogênio, tornaram-se eutrofizadas em pouco tempo;
3) Curto período de adaptação para as espécies nativas (1959 – 2004 = 45 anos): peixes (e outros organismos) de águas correntes forçados a se adaptar ao ambiente lacustre com pressão antrópica ininterrupta (esgotos, pesca, esportes, etc.) – se contarmos que a evolução demora alguns milhares de anos para criar algo...;
4) Introdução de espécies exóticas: concorrência das espécies nativas com as exóticas e perda de diversidade biológica...huummm, aqui já começa a influência direta das espécies exóticas.
Existem duas maneiras das tilápias influírem sobre o lago Paranoá: direta e indiretamente. Diretamente é fácil pensar, pois elas comem a comida dos outros, batem nos outros, como um bom ciclídeo, requisitam espaço/tocas etc. E indiretamente, como seria?
Com base em uma década de estudos experimentais de manejo dos peixes para melhoria da qualidade da água (Programa de Biomanipulação da CAESB), foi definitivamente comprovado o efeito negativo da superpopulação de tilápias acelerando a reciclagem de nutrientes e favorecendo o crescimento das algas indesejáveis através da excreção do fósforo e também na ressuspensão de fósforo depositado no fundo do lago. Esta última referência significa que, por a tilápia ter o hábito de se alimentar rente ao fundo, onde se alimenta, entre outros, de algas bentônicas (especialmente as verdes-filamentosas e as diatomáceas), ingerindo assim, sedimento riquíssimo em fosfato outrora depositado durante o acelerado processo de eutrofização do lago Paranoá, ela acaba por aumentar o teor de nutrientes na água.
Mas por que o Johnny fala tanto em problemas ambientais causados pelas tilápias?
O organismo desses peixes excreta o fósforo diretamente na coluna d’água, na forma de ortofostato, cuja forma é a adequada para uma absorção direta feita por um organismo autotrófico fotossintetizante, a cianobactéria Microcystis aeruginosa, o qual por sua vez atrai o foco do problema, quando falamos em termos de qualidade de água e saúde humana.
Será que tem tanta tilápia assim, a ponto de causar danos ecológicos?
Um levantamento hidroacústico do estoque de pesqueiro no lago (peixes passíveis de cair na rede de um pescador – tarrafas geralmente), indicou um estoque de cerca de 1.400 toneladas de peixe. Vale ressaltar que essa técnica agrega algumas limitações que resultam em subestimativa do estoque pesqueiro total, uma vez que peixes em águas muito rasas e peixes de hábitos bentônicos (“colados” no fundo), não são captados devido à confusão que se faz na recepção do eco. Em complemento, existem variações entre os períodos diurno e noturno. Cabe ainda ressaltar que 50% da biomassa (“peso”) total de peixes é composta por larvas, alevinos e peixes jovens não vulneráveis à pesca comercial com tarrafa, o limite máximo alcançável de redução das tilápias com este aparelho de captura estará limitado a 50% desta biomassa total existente.
Mas eliminar a tilápia não é algo simples de se pensar. Quando falamos em pesca no lago Paranoá, as espécies dominantes são: tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus) com 80%, tilápia do Congo (Tilapia rendalli) com 8% e carpa comum (Cyprinus carpio) com 11%; as demais representam apenas 1%...note que 88% é só de tilápia...
As estimativas do estudo foram, em média, superiores a 300 Kg/ha, o que situa o Lago Paranoá dentre os ecossistemas de maior produtividade pesqueira, quando comparado tanto a lagos tróficos temperados quanto a lagos e reservatórios subtropicais.
Só a título de curiosidade e alarme, mesmo na pesca com malha determinada para retirar possíveis reprodutores e comprometer o recrutamento dos estoques de tilápia, já é sabido que os peixes possuem mecanismos para burlar a pressão da pesca e sobreviver. Como? Elas reduzem o tamanho de maturação e passam a reproduzir mais cedo e menores.
Qual a relação entre a tilápia e a cianobactéria?
Este microorganismo (a cianobactéria), quando estimulado pela presença de nutrientes em grande quantidade, acaba por gerar um florescimento explosivo (bloom), numa atitude oportunista. A espessa camada superficial formada por estes organismos (nata ou escuma), quando em explosão demográfica, impede a penetração de luz, trazendo limitações à fotossíntese e sobrevivência dos demais organismos autotróficos. Esse fator causa um empobrecimento no teor de oxigênio existente na água, conseqüente da retirada do gás pela respiração da cianobactéria e da decomposição dos outros organismos. Na época de inverno, a situação se agrava, pois a grande amplitude térmica do ar, entre dia e noite, causa resfriamento brusco das camadas superiores do Paranoá. Como a água fria apresenta-se mais densa, sua tendência é dirigir-se ao fundo, ao contrário da água de fundo que, mais quente, tende a ascender. Isso acontece porque o resfriamento não se dá gradualmente. Tal movimento acaba por gerar células de circulação na coluna d’água e proporciona a ressuspensão do sedimento depositado, significando um enriquecimento ainda maior de nutrientes nas camadas superficiais e mais produtivas da água. Na presença de luz e nutrientes, a alga apresenta uma explosão populacional produzindo muito oxigênio de dia, mas retirando, pela respiração, este gás em demasia durante a noite.
Além disso, as tilápias agem sobre as populações de plâncton, filtrando com maior eficácia sobre os espécimes menores e menos evasivos (principalmente os rotíferos) e predando de forma seletiva sobre as espécies de maior porte, tais como grandes cladóceros e copépodos; convém ainda ressaltar sua ação sobre o sedimento, e sobre as macrófitas. Esse tipo de comportamento culmina numa promoção de sintomas de eutrofização do corpo d’água, visto que os peixes planctófagos podem predar seletivamente o zooplâncton herbívoro, o qual pastaria sobre o fitoplâncton, onde por sua vez se encontra a Microcystis aeruginosa.
O estopim desse tão mencionado estado eutrofizado foi notado a partir de maciças mortandades de peixes ocorridas nas décadas de 70 e 80 e mais recentemente nos anos de 1997 e 1998, onde aproximadamente 150 toneladas de peixes morreram de repente em cada um desses últimos eventos, sendo que destes 90% eram tilápias.
Reunindo esses diversos fatores físicos, químicos e biológicos, nota-se a excessiva retirada de oxigênio acaba afetando diretamente as comunidades de seres vivos do lago. Todavia, é notoriamente observado sobre o contingente de peixes, quando causa elevada taxa de mortalidade sobre suas populações, uma vez que estão entre os mais perceptíveis habitantes desse corpo d’água.
Dessa forma, o desequilíbrio ecológico, afeta a qualidade da água do lago Paranoá (classificada como Classe 2[1]), e por fim, todo o meio ambiente adjacente, ou em conexão. Mediante os estudos, ficou provado o motivo para se reduzir o excedente populacional dessas espécies exóticas, as quais colaboram com a proliferação das cianobactérias, como uma das etapas do Programa de Biomanipulação. Pois se o peixe pudesse ser removido da cadeia trófica, haveria conseqüente aumento de densidade de zooplâncton, que reduziria a biomassa de fitoplâncton e culminaria na melhoria da qualidade da água.
A forma que melhor se enquadrou num contexto “ambientalmente sustentável” foi a pesca (embarcada) com tarrafa. Sua atuação se dá basicamente sobre estoques de espécies exóticas, destacando-se as tilápias (do Congo Tilapia rendalli e a do Nilo Oreochromis niloticus) e a carpa-comum (Cyprinus carpio). Sabe-se que a porcentagem dos lagos que sofreram peixamentos com espécies piscívoras – com o objetivo de atingir as espécies-problema por meio da predação direta das mesmas – possuem resultados inferiores, quando se analisa a redução de algas, se comparados aos que sofreram a retirada parcial dos estoques de “espécies-problema”.
Com vistas a afetar ainda mais o adensamento de cianobactérias será introduzida uma outra espécie exótica filtradora de algas: a carpa-prateada chinesa (Hyphophthalmichthys molitrix). Calma! Já vimos que a alta biomassa de peixes aumenta a densidade de fitoplâncton devido ao efeito de enriquecimento nutricional por intermédio de sua excreção, certo? Logo, os estudos de biomanipulação estão calculando a densidade de carpas que poderá ser introduzida para fazer a filtração (que inclui as cianobactérias).
E se ela começar a reproduzir e vier a ser a nova praga do lago Paranoá?
Aí é que está...décadas de dados e estudos sobre essa espécie de carpa revelam que ela é incapaz de se reproduzir em lagos. No ambiente natural seus ovos precisam de quilômetros de águas correntes para serem capazes de eclodir e vingar os filhotes. Não há registros de reprodução em lagos. Isso é 100% seguro? Só o tempo dirá...Mas pelo menos se pesquisou bem antes de introduzir um novo peixe num ambiente.
Está vendo quanto trabalho dá? E olha que esse foi só um exemplo de um estudo de caso. Sabemos, porém, que existem outros desastres causados ao ambientes pela introdução de espécies exóticas, como tucunarés amazônicos no Pantanal que fugiram de pisciculturas, gatos domésticos que viraram selvagens na Austrália, mexilhões dourados asiáticos na bacia do Prata que vieram nos lastros dos navios, etc.
Agora, que tal pensar duas vezes antes de soltar seus CAs no lago aí perto da tua casa? O dano ambiental poderá vir a ser irreparável...
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